domingo, 24 de maio de 2009

Por incrível que pareça esse artigo do Flávio Tavares saiu no Zero Hora, e gostei!

saudações dionisíacas!


24 de maio de 2009 | N° 15979
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ARTIGOS

Doentes doentios, por Flávio Tavares*

A doença acompanha os seres vivos. Só os super-heróis das histórias em quadrinhos não são invadidos por doença alguma, sequer as brotoejas de recém-nascidos ou os resfriados da meninice. As sociedades e culturas mais primitivas ou isoladas já respeitavam o enfermo e tinham por ele cuidado, carinho e solidariedade absoluta.

O caso atual da ministra Dilma Rousseff, porém, tende a revelar outra postura. Enquanto ela se mantém íntegra, num exemplo de resistência que abre caminho à regressão do processo cancerígeno, alguns jornalistas e políticos atuam como se a enfermidade os deliciasse ou servisse a seus interesses.

Em surdina ou abertamente, essa gente que chamamos de “políticos” cria táticas e tece conjecturas sobre como “aproveitar” a enfermidade, seja para reforçar ou para contrariar a candidatura presidencial. Usam o tratamento do câncer como objeto mercadológico, rasteiro “marketing”. Nos meios de comunicação, alguns tomam o linfoma como “furo” jornalístico. O que dizer dos fotógrafos, à espreita de que a peruca de Dilma voasse pelos ares, no aeroporto de Brasília, sob o impacto da ventania do descampado, ampliada pelas turbinas do avião do presidente da República, de quem ela fora despedir-se?

Sabiam que a quimioterapia bem-sucedida leva à queda total de cabelos? Ou buscavam “a absurda mulher calva”, a tal “cantora careca” de Ionesco?

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Desrespeitar a quem enfrenta a tragédia com altivez equivale a profanar uma tumba. Só o enfermo sabe da sua dor e do sacrifício, e não carece de intérpretes ou exegetas.

Franklin Roosevelt, o presidente que tirou os Estados Unidos da ruína da “grande crise” dos anos 1930 e governou por três mandatos, era paralítico. Vítima de poliomielite, sempre usou cadeira de rodas. Jamais, porém, foi fotografado assim. Nem filmado nos passos lentos e trôpegos com que tentava caminhar amparado no braço dos ajudantes presidenciais.

No inverno de 1961, máquina fotográfica a tiracolo, eu estava ao lado de Che Guevara na abertura da conferência da OEA, em Punta del Este, sob umidade, ao ar livre, quando ele levou à boca o inalador para amenizar um ataque de asma. Tinha feito dezenas de fotos e podia tê-lo retratado naqueles minutos de suplício intenso de afogamento dos asmáticos. Por instinto, não o fotografei. Queria conhecê-lo pelo que fazia, não pela doença.

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São os atos, não as enfermidades, que definem as pessoas. Em Stalin, não foi o braço esquerdo semimorto que o tornou estranho e brutal, mas o intolerante exercício do poder pessoal, simulando que o despotismo era “o socialismo”.

Só a saúde bastará, porém? O vegetariano Adolf Hitler era saudável e forte, tão forte, que levou a Alemanha à ruína material e moral, que só a excelência de vontade dos alemães pôde superar.

Entre nós, o presidente Collor era jovem e atlético. A imprensa acompanhava, boquiaberta, suas caminhadas dominicais ao redor do lago de Brasília, pois jamais um chefe de governo demonstrara tanto fôlego. Terminou onde sabemos.

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Na Argentina, em 1952, ao revelar-se que Evita Perón padecia um câncer de colo de útero, só detectado na fase final, quando os tumores se alastravam, uma frase morbidamente diabólica apareceu nos muros de Buenos Aires: “Viva o câncer!”.

O presidente Juan Perón era implacável, mas os opositores revelaram-se ainda mais cruéis e impiedosos. Até hoje a Argentina vive envolta no ódio, na visão atroz de que a política não é um debate de ideias, mas guerra corpo a corpo, à espada ou baioneta, em que a morte vence.

Mundo afora, os doentes doentios perturbam mais do que as doenças.

flavio.tavares@zerohora.com.br

*Jornalista e escritor

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