sábado, 5 de março de 2011

EXISTE OU NÃO EXISTE? EIS A QUESTÃO, por Marcos Bagno

Segue ótimo texto do professor Marcos Bagno, do seu site http://marcosbagno.com.br


A ideologia purista no que diz respeito à língua é tão autoritária e dogmática que um de seus principais recursos retóricos é negar pura e simplesmente a existência mesma dos usos linguísticos que seus defensores rotulam de “erros”. Nesse discurso, se uma determinada construção sintática não é acolhida pela tradição gramatical, diz-se que “isso não é português”, ainda que 300 milhões de pessoas em quatro continentes falem assim. Se determinada palavra não vem registrada nos dicionários é porque ela “não existe”.

Esse discurso faz a operação principal das ideologias, no sentido clássico desse termo nas ciências sociais: o falseamento da realidade por meio da inversão da história. Dá a impressão de que, na aurora dos tempos, Deus disse: “Faça-se a gramática, faça-se o dicionário”. Assim a língua foi criada e somente depois surgiram as pessoas que iam falar a língua. Essa operação ideológica fica bem evidente no discurso, igualmente tradicionalista, de que “hoje em dia ninguém fala certo”, como se em algum momento do passado, numa Idade de Ouro linguística, todas as pessoas tenham falado a língua exatamente como ela vem prescrita nas gramáticas e nos dicionários. Pura fantasia, agridoce ilusão. Ninguém jamais, em lugar nenhum, falou, fala ou falará uma língua tal como vem desenhada e moldada nas gramáticas e nos dicionários. Essa “língua” registrada ali é que, de fato, não existe. É um modelo utópico, um padrão ideal, baseado numa modalidade de uso extremamente restrita, um cânone literário antiquado, e que despreza tudo o que a ciência moderna sabe a respeito das línguas: que elas são mutantes, variáveis, heterogêneas, instáveis.



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Saudações Dionisíacas

quinta-feira, 3 de março de 2011

Cultura do carrão, por Juremir Machado da Silva

Como este blog anda mais parado que água de poço, resolvi postar este texto do Juremir, disponível no Blog dele no site do Correio do Povo.


Cultura do carrão

Essa história do atropelador de ciclistas dá o que pensar sobre a humanidade. Não sobre a natureza humana, como falam alguns, mas justamente o oposto: sobre a cultura humana. Ou uma das suas possibilidades: a cultura do carro. É verdade que a atitude boçal do sujeito remete à frase de Charles Darwin sobre o chacal que dorme em cada um de nós. Quando ele acorda sob a forma de motorista, é um horror. Não insultemos, no entanto, os chacais inutilmente. A cultura do carro leva a manifestações bizarras do tipo: “Não vamos nos precipitar no julgamento. De repente, os ciclistas estavam batendo no carro. Sem querer, justificar, é claro”, Já, evidentemente, justificando, arranjando atenuantes ou pretextos “aceitáveis”.
Nada justifica.
Psicopata motorizado, uma das formas mais agressivas dessa doença. A cultura do carro chegou ao apogeu do ridículo com os utilitários 4x4 para uso dentro de grandes cidades com ruas apertadas, trânsito lento e espaço ínfimo para estacionamento. Para que serve um camionetão desses no centro de Porto Alegre ou de São Paulo? Para impressionar maria gasolina, humilhar machos concorrentes sem a mesma bitola e queimar dinheiro excedente, ou, em certos casos, lavar, sob a forma de distinção social. Em bom português, a cultura do carro é própria de sociedades individualistas e “marrentas”. Lembra um pouco aqueles traficantes do Morro do Alemão filmados com gigantescos correntões de ouro no pescoço cuja única finalidade é ostentatória: exibe o poder do usuário, o que o diferencia dos outros, num lugar onde seu dinheiro já não pode adquirir outro objeto de classe.
Trocando em miúdos, é coisa de sociedade primitiva, nos vários sentidos da palavra. Lembra, por exemplo, certos cultos de consumo do excedente produzido e de ostentação de certas culturas ditas indígenas. Em rituais com o kula e o potlatch (corram ao google), porém, há dom e contradom, ou seja, troca, reciprocidade, festa, generosidade. É um dando que se recebe positivo em que cada um quer dar mais que o outro (parecem certos carnavais ou baile funk) para mostrar riqueza e desprendimento. É menos a lógica do consumir que a do se consumir, entregar, dar tudo. Na cultura do carrão inútil, contudo, a festa é calculada para ter efeitos de marketing e produzir resultados. As ruas pertencem aos poderosos em seus veículos blindados e de vidro escuro.
Quanto maior a capacidade de consumo de combustível e o poder destrutivo em caso de atropelamento, maior a capacidade distintiva. Aí o cara vê um monte de bicicletas na sua frente e pensa: que fazem essas coisas raquíticas na frente do meu bólido (se soubesse o que é bólido)? Com a cara de cachorro louco do Kadhafi, o macho típico da cultura do carrão acelera, atropela, passa sinal fechado e, em caso de multa, vocifera contra a terrível, maldosa e ardilosa “indústria da multa”. O futuro pertence ao transporte coletivo. Os adoradores de carrões talvez tenham de comprar só correntões de ouro.


Postado por Juremir Machado da Silva - 02/03/2011 10:51